Que ridículo e mesmo estúpido dizer-se de
um livro que está bem escrito. Não é «bem escrito» que está. Está é sentido
originalmente, original nas observações, inteligente na reflexão. É por isso
que não se pode imitar. Pode-se é ser original de outra maneira. Há realmente
livros que são apenas «bem escritos». São os livros banais, com palavras
trabalhadas ao torno, frases que se pretendem «despojadas», reduzidas ao «essencial»,
e cruas. Mas como o que nelas está não representa um sentir originário, nem uma
observação imprevista, nem uma reflexão que nos surpreenda pela justeza e
profundidade, o que delas resulta é uma construção pretensiosa, estéril e quase
sempre irritante. Decerto um romance (como a poesia segundo Mallarmé e como
creio já ter dito), faz-se com palavras. Pois com que é que havia de fazer-se?
Mas antes disso faz-se com o impulso animador a essas palavras e que assim não
passa bem por elas mas por entre elas, fazendo delas apenas um apoio para
passar além, como o som passa pelas cordas mas existe por entre elas e é nesse
som o indizível que nos emociona. O que nos fica de um livro «bem escrito» é
essa emoção que já não lembra as palavras e vive por si.
Eis porque tal livro é inimitável e apenas
poderá repetir-se, ou seja plagiar-se. Imitar verdadeiramente esse livro é
recompor uma emoção afim e inventar outras palavras que traduzam esse sentir,
ou seja que lhe sirvam de pretexto ou estratagema para que esse sentir (e
pensar/sentir) se realize como a música nas cordas de um instrumento. O
escritor medíocre imagina que todo o seu trabalho deve incindir no trabalhar
uma frase. Ora não é a frase que tem de se trabalhar: é aquilo que há-de passar
por ela. Os autores célebres que trabalharam a frase, na realidade trabalharam
apenas aquilo que haviam de exprimir; testaram na frase a realização de uma
expressão. O escritor medíocre dá como já adquirido o que haveria a dizer e
todo o seu esforço é secar o período, burilar ou envernizar o vocábulo. E no
fim de contas, este é que «escreve bem». Mas quem assim escreve bem, escreve
bastante mal. Não digo rasamente que o «conteúdo» preceda a sua «expressão».
Mas o que preexiste à expressão não é um puro nada. Exprimir é operar e concretizar
esse algo. Mas esse algo existe. Escrever bem, como se diz, é realizar pela
escrita um «bem» que aí se revela mas que está antes e depois disso em que se
revela. Escreve-se bem com o espírito e a sensibilidade - não com um
dicionário. Embora seja no dicionário que está toda a obra-prima. Como na pedra
está toda a melhor escultura.
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 4'
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 4'
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